Texto: Vitor Ilis
Acordar de madrugada para ver se está tudo bem, preparar o café da manhã com carinho, cuidar do banho, da medicação, da escola. Essa é a rotina diária de dona Marilza Pereira dos Santos, aposentada que se tornou mãe de novo. Ela é avó de Júnior, jovem com Transtorno do Espectro Autista (TEA), por quem assumiu toda a responsabilidade desde que era criança.
“Ele é autista. Ele chorava muito, sem parar, até que descobriu”, relembra.
O episódio especial da série “Mães Atípicas”, produzida pela Defensoria Pública de Mato Grosso do Sul, homenageia nesta edição as avós que cuidam de netos com deficiência ou transtornos do neurodesenvolvimento. Em muitos casos, como o de Marilza, essas mulheres assumem a criação integral de suas netas e netos diante do abandono paterno ou da dificuldade das próprias mães em lidar com a situação.
“Uma vez verificado que aquela criança vai demandar um cuidado mais apurado, um gasto maior, os pais muitas vezes acabam abandonando suas famílias. E se a mãe não tem maturidade ou condições, as avós acabam virando essas mães atípicas dos seus netos”, explica o, então, coordenador do Núcleo da Família e Sucessões da Defensoria (Nufam), defensor público Carlos Felipe Guadanhim Bariani.
Na casa de Marilza, o cuidado é diário e exige atenção constante. “O Júnior não dorme de noite, só de dia. Eu levanto para ver, porque ele bate nas portas, fica pulando no quarto. Eu fico com medo de ser alguém que entrou dentro da casa, né?”, conta.
A dificuldade para manter Júnior na escola foi um desafio à parte. Segundo Marilza, ele estava matriculado, mas não conseguia se adaptar. “Eu queria que ele voltasse a estudar (...) porque ele vai se envolver ali com as pessoas. Aí tudo o que ele vê lá, ele vai chegar em casa e contar.”
Além da rotina intensa, as avós atípicas ainda precisam buscar os direitos dos netos e o próprio suporte emocional. A Defensoria Pública atua nesses casos para garantir, por meio da Justiça, ações como o recebimento de pensão alimentícia, interdições legais e inclusão em políticas públicas.
“A Defensoria tem a possibilidade de auxiliar com ações de alimentos, interdição ou mesmo questões sucessórias. Essas mulheres enfrentam desafios desde os cuidados diários até a luta por inclusão social”, afirma Bariani.
Mas, entre o cansaço e os obstáculos, há também amor, afeto e pequenos gestos que mostram a importância do vínculo. “Hoje mesmo eu chamei ele para tomar café da manhã, ele falou que não ia. Então fui no quarto e falei: Júnior, a avó te ama, a avó gosta de você, vamos lá tomar café. Aí ele falou: então eu vou”, conta Marilza.
Ela lembra que o neto sempre repete que quer ser policial. “Não pode passar um carro de polícia que ele corre para ir ver.”
Segundo o defensor Carlos Felipe, mães e avós como Marilza precisam saber que não estão sozinhas. “Seus filhos têm direitos. Vocês têm que procurar auxílio. A Defensoria está aqui para dar toda a orientação necessária. A palavra é essa: não desistir.”
Série “Mães Atípicas”
A série produzida pela Defensoria Pública de MS busca dar visibilidade às histórias reais de mães e avós atendidas pela instituição. São mulheres que enfrentam, diariamente, a ausência de políticas públicas, mas que seguem em frente com coragem, reivindicando o direito à inclusão, ao respeito e à justiça para seus filhos e filhas.
O que é ser uma mãe atípica?
O termo se refere às mulheres que criam filhas e filhos, netas e netos com deficiências, síndromes raras ou transtornos do neurodesenvolvimento, como o TEA. São mães que enfrentam desafios únicos, como a dificuldade de diagnóstico, sobrecarga emocional, exclusão escolar e barreiras para acessar políticas públicas. A maternidade atípica exige resiliência e constante luta por inclusão, acolhimento e respeito — tanto no ambiente familiar quanto na sociedade. A realidade dessas mães é marcada pelo amor, mas também pela ausência de apoio e pelo excesso de responsabilidades.