1ª reunião entre NAS e demais integrantes da rede de oncologia.
Texto: Danielle Valentim
Um vazio de assistência em saúde a crianças de 0 a 10 anos foi a causa encontrada pela Defensoria Pública de Mato Grosso do Sul, após reportagem trazer à tona meses de espera por radioterapia infantil por falta de anestesistas em Campo Grande. Com um trabalho de investigação e intermediação de dois meses, a Defensoria garantiu o retorno do tratamento ao Estado, colocando a possibilidade do Tratamento Fora de Domicílio (TFD) como exceção.
A busca ativa da Defensoria desvendou uma lacuna no atendimento às crianças da referida faixa etária, por falta de pactuação, entre os atores que integram a rede de atendimento Oncológico de MS. A reportagem veiculada no dia 4 de setembro apresentou o dilema vivido por duas crianças, quando, na verdade, a interrupção do procedimento no Estado impactou sete pacientes.
A manchete chamou a atenção da coordenadora do Núcleo de Atenção à Saúde (NAS), defensora pública Eni Diniz, considerando que a referida demanda nunca chegou à Defensoria.
À esquerda, defensor Nilton; À direita, coordenadora do NAS, defensora Eni Diniz. (Foto: Danielle Valentim)
A Defensoria Pública de Atenção à Saúde, por meio do defensor público Nilton Marcelo de Camargo, é autora de uma ação coletiva de radioterapia - já sentenciada -, e desde 2019, acompanha a fila e o serviço da oncologia na microrregião de saúde de Campo Grande. O monitoramento realizado a cada dois meses permite, por exemplo, que a Defensoria da Saúde saiba quando há algum caso de oncologia que esteja com o tratamento em atraso ou quando advém alguma lacuna na prestação do serviço.
“Começamos a investigar por que, além dos casos não terem chegado à Defensoria, o monitoramento não indicava nem crianças na fila. Descobrimos que as duas crianças da reportagem eram do interior do Estado e que estavam na Associação dos Amigos das Crianças com Câncer (AACC). Fomos até lá para entender o que acontecia, considerando que a lei determina um prazo certo e determinado para o início do tratamento. Nossa equipe verificou, ainda, que um total de setes passavam pela mesma situação”, explica a coordenadora do NAS.
Na AACC, a coordenadora do NAS foi informada de que não havia radioterapia infantil em Mato Grosso do Sul porque o referido tratamento precisa de sedação, e que quando surge demanda, as crianças são incluídas no Tratamento Fora de Domicílio (TFD).
Enviada a solicitação de atendimento a São Paulo pelo TFD, as duas crianças da reportagem foram recusadas pelo prestador de serviço executor, pois, segundo registros, já teriam iniciado, de alguma forma, o tratamento em Campo Grande.
“Essas duas crianças estavam numa situação de falta de assistência absoluta, não havia perspectiva de fazer a radioterapia infantil porque não tinha o serviço no Estado e foram rejeitadas em São Paulo. Entendemos que havia algum entrave nesse meio, inclusive porque a imprensa estava concentrada na falta de anestesista”, pontua a coordenadora.
1ª reunião e causa do problema
O Núcleo de Saúde, por meio do defensor Nilton, que tem o controle da rede e de todos os prestadores, convocou uma reunião entre a Secretaria Estadual de Saúde, a Secretaria Municipal de Saúde, Regulação do Município, Ministério Público, bem como os executores que fazem radioterapia no Estado: Hospital Regional, Hospital Universitário e o Hospital Alfredo Abraão.
A ideia do encontro foi entender o que estava ocorrendo e construir uma solução que contemplasse as crianças da forma mais imediata possível. A Defensoria identificou uma questão bárbara: um vazio de assistência à crianças de 0 a 10 anos.
“As crianças dessa faixa etária não faziam a radioterapia aqui e eram enviadas via TFD para fora do Estado, por isso, nunca apareceram na lacuna do monitoramento, pois nunca havia ocorrido uma negativa, por parte de exectuores de fora do Estado, aos encaminhamentos de TFD, que são caros e também custosos para família, porque a mãe ou o pai tem que se deslocar para um outro estado e permanecer, temporariamente, numa casa de apoio durante todo o tratamento da criança que pode ser rápido, longo ou ter outros desdobramentos”, explica o defensor.
Sedação e falta de anestesista
A coordenadora do NAS explica que a lacuna, entre 0 a 10 anos, existia porque a criança precisa ser sedada para fazer a radioterapia. Acima de 10 anos, a criança suporta o tratamento sem movimentos e atendendo a comandos.
O ruído de que a ausência de radioterapia infantil estaria ligada a falta de anestesistas se deu porque, como as crianças não conseguiram o tratamento em São Paulo, as famílias foram encaminhadas ao HU, já que o hospital teria o serviço de radioterapia e também o anestesista.
No entanto, o serviço não contemplava as crianças, pois, além do Hospital Universitário de Campo Grande não realizar radioterapia infantil, o problema com falta de anestesista é estrutural do hospital e não tem a ver com a radioterapia, mas com todo e qualquer procedimento clínico.
Solução paliativa
A Defensoria questionou se a Secretaria Estadual de Saúde teria alguma proposta e a resposta foi de que seria disponibilizado um médico anestesista para ir até o Hospital Universitário fazer a radioterapia das crianças.
O defensor Nilton destaca que a notícia chegou a ser divulgada na mídia como uma solução do problema, quando, na verdade, o profissional não atenderia toda a demanda, mas apenas as duas crianças personagens da notícia.
“Isso para a Defensoria é inaceitável, porque, ou nós resolvemos o problema de todas as crianças ou vamos executar a sentença que temos”, pontuou o defensor Nilton.
Falta de comunicação
À Defensoria, um representante do Hospital Alfredo Abrão afirmou que, no passado, a terapia era feita em Campo Grande porque o hospital tinha médico anestesista. No entanto, parou de ser feita porque o referido hospital não tinha retaguarda de UTI infantil.
O hospital levou em consideração uma intercorrência ocorrida alguns anos atrás durante o procedimento, sem morte, mas que rebaixou a situação clínica de um paciente e, desde então, decidiu não fazer mais a terapia sem a retaguarda necessária.
A volta do tratamento x fluxo de encaminhamento
Em reunião com a Defensoria e demais integrantes da rede, o Hospital de Câncer se propôs a voltar a fazer a radioterapia infantil desde que houvesse retaguarda da UTI infantil e um ajuste financeiro.
O Estado, com interesse de solucionar o problema, se propôs a fazer a retaguarda por meio do Hospital Regional, que comprometeu-se a garantir leito de retaguarda em UTI pediátrica. Por sua vez, o Hospital de Câncer comprometeu-se em contratar um serviço de ambulância para ficar à disposição durante o período em que alguma criança realize tratamento de radioterapia.
O Hospital de Câncer também afirmou a necessidade de receber pelo serviço e a Defensoria Pública passou a intermediar junto ao Estado uma contrapartida financeira, com um aditivo. Após estimativas de custos feitas, via ofícios, a Secretaria Estadual de Saúde aceitou os valores.
Estabeleceu-se um fluxo de encaminhamento da criança:
O Hospital de Câncer retoma a prestação do serviço de radioterapia infantil e uma ambulância permanece no nosocômio durante as sessões de radioterapia de crianças e – em caso de intercorrências – o paciente é encaminhado para o Hospital Regional, que garante de leito de UTI infantil se necessário for. Diante do acordo ajustado, o Hospital Alfredo Abrão abriu a agenda para atender as crianças.
“A média de crianças que passam pela radioterapia ao ano é de 15 a 25. Então, esse ajuste foi feito para quatro crianças/mês, o que está em um valor muito maior do que a própria estimativa anual de radioterapia infantil, então é um bom acordo, de modo que a radioterapia infantil agora tem retaguarda para urgência e emergência e será feita pelo Hospital do Câncer, sem que isso tenha acúmulo de fila, considerando que esse fluxo contempla as crianças de todo o Estado, não só de Campo Grande”, explica o defensor Nilton.
Solução definitiva
O termo aditivo especifica os valores, quantidade e qual a responsabilidade de cada um. Ainda em outubro, a coordenação do NAS se reuniu com o secretário Estadual de Saúde, onde foi apresentada a realidade do serviço de radioterapia infantil na região de saúde de Campo Grande e, inclusive, que o termo aditivo já está pronto, em fase de assinatura.
“Por conta desse trabalho não houve uma solução paliativa ou temporária, mas sim a resolução definitiva do problema apresentado pela imprensa. A Defensoria, por meio de busca ativa junto aos pacientes e articulação com os gestores e prestadores de serviço, conseguiu contemplar um vazio de assistência que não se relacionava com a falta de anestesistas no HU. A contemplação de anestesistas para o HU é uma situação estrutural e de difícil equacionamento a curto prazo, e as crianças em tratamento oncológico não tem tempo a perder.”, finaliza a coordenadora do NAS.
Agora o TDF é exceção
A coordenadora do NAS reitera que a radioterapia infantil feita em Campo Grande possui certo nível de capacidade técnica. A criança que se encontrar em uma situação clínica peculiar, devidamente reconhecida, poderá ser encaminhada ao TFD.
“O TFD agora é a exceção das exceções e não a regra, como antes”, frisa a coordenadora do NAS.
Cobertura adequada
A divisão do serviço de Oncologia, para a Defensoria, não é a cobertura mais adequada. Atualmente, a fragmentação do serviço obriga o paciente passar por diversos serviços. Um paciente pode, por exemplo, realizar quimioterapia em um nosocômio e, se necessário, ser redirecionado a outro para iniciar um tratamento de radioterapia, ou ainda realizar exames clínicos em outro prestador. Com isso permanece à espera de agendamento e chamada pelo sistema de regulação, segundo a oferta de vagas disponibilizadas por cada prestador. Essa fragmentação prejudica a eficiência que um serviço em oncologia poderia oferecer se uma ou duas Unidades de Alta Complexidade (Unacons) concentrasse todos os serviços, via SUS.
“Deveria ter um único Centro de Tratamento ou talvez dois. Mas a questão mais gravosa, ocorre quando se fragmenta um serviço, dando a ele há vários prestadores. Na Oncologia, quimioterapia e radioterapia são serviços de meio, mas com expectativa de bons resultados. Com a fragmentação retira-se de cada um dos executores o compromisso da especialização e da eficiência, de modo que se permite ao executor dizer, por exemplo, que sua máquina de radioterapia, mesmo obsoleta, está funcionando e ele está prestando o serviço. Oncologia é uma área muito complexa, sua capacidade instalada exige planejamento a longo prazo para se manter um compromisso de especialização e aperfeiçoamento constante. Todos os prestadores querem o melhor, mas o resultado da fragmentação é que ninguém atinge a excelência, ninguém é contemplado na sua totalidade com aquilo que poderia vir a ser”, finaliza o defensor.
Qual é o papel da Defensoria Pública?
A Defensoria Pública de MS está atenta às questões que envolvem a saúde coletiva. Quando defensoras e defensores públicos identificam um problema, uma busca ativa é realizada para encontrar a causa e descobrir uma forma de solucionar para atender toda a coletividade, principalmente, de forma extrajudicial. O Núcleo de Atenção à Saúde (NAS) tem um papel de destaque na articulação com a rede.
“Só conseguimos entender qual é o problema quando temos conhecimento do direito do paciente frente ao SUS e da complexidade de sua demanda - que é o que nós temos aqui -, e quando reunimos todos os entes da rede. Então essa é a importância da atuação da Defensoria Pública no âmbito coletivo e extrajudicial, ou seja, de ter a capacidade de identificar uma violação total de direito, um vazio assistencial e articular da forma correta para resolver a questão”, finaliza a coordenadora do NAS.
O termo aditivo já está ajustado em fase de colheita de assinaturas. Além deste, a Defensoria estabeleceu um canal de comunicação com a AACC para que as demandas relacionadas à oncologia cheguem imediatamente à Instituição.